domingo, 25 de fevereiro de 2018

Sincretismo religioso e suas origens no Brasil

Sincretismo é a fusão de doutrinas de diversas origens, seja na esfera das crenças religiosas quanto nas filosóficas. Na história das religiões, o sincretismo é uma fusão de concepções religiosas diferentes ou a influência exercida por uma religião nas práticas de outra. No Brasil o sincretismo religioso é uma prática bastante comum. Mas tudo começou a partir do ano de 1500, quando o território brasileiro se tornou palco para o encontro de três grandes tradições culturais: a ameríndia, nativa da terra; a europeia, trazida pelos colonizadores portugueses e mais tarde a africana, trazida pelos escravos Bantu e sudaneses.
Um encontro que foi, desde o início, marcado pela imposição da cultura europeia às populações indígenas e africanas, refletida, principalmente, na imposição da cultura cristã da Igreja Católica Apostólica Romana a esses dois grupos. Para se viver no Brasil, nesta época, o índio e o negro mesmo como escravo, e principalmente depois, sendo livre, era indispensável antes de tudo, ser católico. Por isso eles que cultuavam seus deuses e tinham suas bases religiosas bem estruturadas, no Brasil se diziam católicos e se comportavam como tais, além de praticarem os rituais de seus ancestrais, frequentavam os ritos católicos. Há antropólogos que insistem que a assimilação entre os Santos e os Orixás era aparente e, inicialmente, serviu para encobrir a verdadeira devoção aos seus deuses, pelo fato dos cânticos nesses rituais terem sido efetuados em língua nativa e que ninguém os entendia. Um fato histórico que pode opor-se a este pensamento é a criação das confrarias de negros, como exemplo temos a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, na Bahia, que era totalmente composta por negros que haviam realmente se convertido ao Cristianismo e não eram apenas uma fachada (Opinião do autor).
Essa tentativa forçada de aculturação sempre encontrou resistência, o que acabou resultando em várias tentativas feitas por indígenas e africanos de conciliar os princípios de suas culturas e, por consequência, de suas tradições religiosas, a doutrina cultural e religiosa que lhes eram impostas.
Na tentativa de preservação dos princípios e práticas religiosas indígenas e africanas, por meio da conciliação com os princípios e práticas católicas, acabaram levando ao nascimento de várias manifestações sincréticas em solo brasileiro, únicas no mundo, algumas delas existentes até os dias de hoje. Mas infelizmente existem poucos estudos sobre a grande maioria delas, o que veremos aqui, é uma pequena ideia de como eram as bases dessas duas culturas religiosas, o sincretismo entre elas e os processos que as levaram a dar origem a outras.
O início de tudo se deu com a religiosidade Tupi, embora várias nações indígenas habitassem o território brasileiro durante os primeiros anos da colonização europeia, nenhum grupo foi tão influenciado pelos portugueses quanto os tupis, que no século XVI dominava quase todo o litoral brasileiro e era formada pelas tribos: Potiguar, Tremembé, Tabajara, Caeté, Tupinambá, Aimoré, Tupiniquim, Temiminó, Tamoio e Carijó.



É muito difícil tentar reconstruir com detalhes as tradições religiosas e crenças tupis na época do descobrimento do Brasil, pois o que sabemos sobre elas deve-se aos relatos feitos por europeus que se estabeleceram aqui no início do período colonial, os quais não se preocuparam em estudar e deixar registros detalhados das mesmas. O que podemos apreender dos relatos dos primeiros colonizadores sobre a religiosidade tupi foi que seu ponto central era o culto à natureza deificada ou divinizada. O pajé e o feiticeiro, ou xamã, eram os que tinham acesso ao mundo dos mortos e dos espíritos da floresta, e geralmente a eles competiam realizar rituais de cura de doenças, expulsarem maus espíritos que se alojavam nos corpos das pessoas e desfazer feitiços mandados pelos inimigos.
A ingestão de alimentos e bebidas fermentadas em muitos grupos tinha uma função ritualística. Mesmo a antropofagia que caracterizou os tupinambás se revestia de um tom sagrado, pois acreditavam que, comendo a carne dos seus inimigos, apoderavam-se de sua valentia e coragem.
Os tupis possuíam uma divindade suprema do bem que denominavam Nhanderuvuçu, deus da criação e da luz e a quem competia o ato divino do sopro da vida. Nhanderuvuçu teria sua morada no Sol, manifestava-se nas tempestades através de sua voz, na forma de Tupã Cinunga e de seu reflexo, na forma de Tupã Beraba. Segundo Câmara Cascudo e Osvaldo Orico, grandes historiadores e estudiosos da cultura brasileira, somente com o trabalho da catequese, e com a confusão feita pelos jesuítas, que Nhanderuvuçu passou a ser chamado de Tupã, em virtude das formas como essa divindade se manifestava durante as tempestades.
Os tupis acreditavam também em outras divindades, como Guaraci (o deus do sol), Jaci (deusa da lua), Caapora (deus da floresta), Uirapuru (deus dos pássaros), Iara (deusa das águas) e em uma entidade civilizadora denominada Iurupari, filho da virgem Chiuci, que teria sido mandado à terra por Guaraci para reformar os costumes dos seres humanos. Segundo Diamantino Trindade essa crença que lembrava muito a história de Jesus Cristo, teria deixado os jesuítas apavorados. Como forma de tornar a religião católica mais fácil de ser assimilada pelos indígenas, os jesuítas associaram ao seu deus e santos os nomes de algumas divindades tupis. Foi assim, por exemplo, que Nhanderuvuçu passou a ser chamado de Tupã e foi transformado em Deus/Pai. Entretanto, na maioria dos casos, os jesuítas associaram os deuses indígenas aos demônios da doutrina católica.
Foi o caso, por exemplo, de Iurupari, que teve sua imagem totalmente invertida e acabou sendo associado ao próprio diabo, embora sua história lembrasse muito a de Jesus. Isso tudo acabou gerando a primeira religião sincrética surgida no Brasil da junção da Religiosidade Tupi e do Catolicismo, que ficou conhecida como santidade, nome criado por Manoel da Nóbrega, em 1549, quando viu um pajé em transe pregando a outros indígenas.
Os adeptos da Santidade cultuavam um ídolo de pedra, chamado de Tupanaçu, que acreditavam possuir poderes sagrados, rezavam usando cruzes, terços e rosários, construíam “igrejas” e colocavam tábuas com desenhos de símbolos sagradas nelas, cultuavam alguns santos católicos e entoavam cantos em honra aos mesmos, faziam um ritual semelhante ao batismo e realizavam procissões. Neste mesmo período, com o início dos trabalhos de catequese na região amazônica, a partir da cidade de São Luís do Maranhão, iniciou-se um processo de sincretismo entre a religiosidade ameríndia local e o catolicismo, semelhante ao que ocorrera no litoral, levando ao surgimento da religião sincrética conhecida pelo nome de pajelança.
Embora o termo pajelança acabe sendo usado também para designar todo e qualquer ritual ameríndio, ele aqui designa a religião sincrética de caráter mágico-curativa que ainda existe nos dias de hoje na região amazônica, sobretudo nos estados do Pará e do Amazonas. A exemplo da Santidade, nos rituais da Pajelança são encontrados o uso de trajes nativos (pena, arco, flecha, colares, máscaras), cantos e danças, a fumaça derivada da queima do tabaco e o consumo de bebidas fermentadas, que permitem ao pajé entrar em transe místico e ter visões e incorporar espíritos.
Em algumas Pajelanças pode-se encontrar também a devoção aos santos católicos. Uma característica marcante da Pajelança é que além de incorporarem os espíritos dos antepassados das tribos e de antigos chefes do culto, os pajés também incorporam espíritos animais, sejam eles reais como: jacarés, botos, cavalos-marinhos, cobras ou imaginários como: mãe d'água, cobra-grande, e por meio dos quais descobriam a causa das doenças de seus consulentes e os remédios para eles.
A partir do século XV inicia-se uma das maiores migrações forçadas da história da humanidade, na qual milhões de africanos que haviam sido capturados em seus territórios ancestrais, na maioria das vezes por outros africanos de tribos rivais, foram levados para o litoral e vendidos como escravos para os europeus e brasileiros em portos específicos na África e trazidos nessas condições para o Brasil.
No final do século XVI ao final do século XVIII, a principal etnia trazida para o Brasil foi a dos Bantu, povo que durante o período colonial brasileiro ocupava a maior parte do continente africano situado ao sul do equador, na região onde hoje está localizado o Congo, a República Democrática do Congo, Angola e Moçambique, entre outros. Parece que a grande maioria dos Bantu que foram trazidos para o Brasil cultuava um deus supremo chamado de Nzambi, Nzambi Mpungu ou Anganga Nzambi, ou simplesmente Zambi como é conhecido hoje, e a natureza deificada que era personificada nas divindades chamadas Nkise.
Assim que chegavam ao Brasil, os africanos escravizados eram logo submetidos à aculturação portuguesa, traduzida principalmente na catequese católica: eram batizados e recebiam um nome “cristão”, pelo qual seriam conhecidos a partir daquele momento. Assim como os Tupi, os Bantu também tentando preservar suas tradições religiosas no Brasil, adaptaram suas crenças às condições de escravidão que estavam submetidos.
A principal forma encontrada por eles, como foi feito também pelos Tupis, décadas antes, foi associar os santos católicos aos seus deuses, no caso aqui os Nkise, de acordo com as características ou arquétipos que ambos possuíam em comum. Foi a partir deste sincretismo, ocorrido no interior das senzalas a partir do final do século XVI, que nasceu a primeira manifestação sincrética da religiosidade Bantu/católica no Brasil: o Calundu. Seu nome foi originado da palavra banto Kilundu, que até o século XVIII foi utilizada para designar genericamente a manifestação de práticas africanas relacionadas a danças e cantos coletivos, acompanhadas por instrumentos de percussão, nas quais ocorria a invocação e incorporação de espíritos e a adivinhação e curas por meio de rituais de magia.
O que nos chama a atenção são os relatos da aparente tolerância manifestada pelos proprietários de escravos ao Calundu. Muito provavelmente essa atitude devia-se a crença de que com essa prática os africanos manteriam vivas, pelo menos dentro da senzala, as rivalidades tribais existentes na África, o que dificultaria a formação de rebeliões ou fugas.
É importante ressaltar que, apesar dessa tolerância, os aspectos ritualísticos do Calundu ligados a magia e a incorporação de espíritos eram frequentemente combatidos por serem considerados coisas malignas, surgindo daí a expressão magia negra para designar a magia voltada para o mal, que na mentalidade da época era “coisa de negro”.
Ao longo de todo o período de escravidão negra no Brasil, inúmeras foram as tentativas bem-sucedidas de fugas das senzalas empreendidas pelos africanos.
Os relatos dos inúmeros quilombos existentes no país ao longo dos períodos colonial e imperial são a prova mais marcante disso. Entretanto, no início, antes do surgimento dos primeiros quilombos, os africanos que conseguiam sucesso em suas fugas só conseguiam abrigo nas aldeias indígenas do interior. Mais do que abrigar os primeiros africanos Bantu fugidos das senzalas, as aldeias indígenas abrigariam toda a cultura e religiosidade deles, que acabaria por influenciar sua própria cultura e religiosidade.
Muito provavelmente no nordeste do século XVII, onde uma pequena parcela de religiosidade dos Bantu acabou se misturando ao sincretismo ameríndio-católico do interior, levando ao surgimento da primeira religião sincrética brasileira, o Catimbó, surgida da fusão religiosa dos três povos formadores do país, também conhecido como Culto a Jurema, resistente até os dias de hoje em todo o nordeste brasileiro. Apesar de existirem a incorporação de Caboclos no Catimbó, seu culto baseia-se principalmente nas entidades conhecidas como Mestres da Jurema ou apenas Mestres, e é através deles que se realiza o principal trabalho das entidades do Catimbó, a cura de doenças e a receita de remédios para os males físicos, podendo também ocorrer trabalhos para solucionar alguns problemas materiais e amorosos. Cabe também aos Mestres e aos Caboclos realizar a limpeza espiritual dos adeptos e a expulsar maus espíritos das pessoas.
Os Mestres são entidades que se especializam em determinada erva ou raiz e que guardam muito do comportamento e personalidade de sua última encarnação, o que os torna muito naturais e espontâneos, além de possuírem uma forte ligação com a sua caracterização física. Uma característica que chama a atenção é que não existem Mestres do bem ou do mal: eles tanto podem trabalhar para um quanto para o outro, dependendo da orientação do local de culto e do médium. Ao longo dos séculos XVII e XVIII cresce consideravelmente o número de cidades em todo o país, devido a esse fato, surge uma situação completamente nova em todo o território colonial: o aumento do número de negros e mulatos alforriados, livres, e de escravos circulando com relativa liberdade nessas áreas urbanas.
A partir das residências desses negros e mulatos livres, localizadas em sua grande maioria em casebres e cortiços, que as manifestações religiosas de origem africana encontraram condições mínimas para se desenvolverem, onde poderiam realizar suas festas com certa frequência, construírem e preservarem seus altares com os recipientes consagrados aos seus deuses. São nessas residências que surgem em fins do século XVIII e início do século XIX, uma nova manifestação sincrética brasileira, que ficou conhecida na Bahia como casas de candomblé.
O Candomblé surge então com base no fortalecimento das tradições religiosas dos Bantu preservadas no sincretismo com o Calundu e a assimilação de algumas poucas práticas indígenas que sobreviviam nos quilombos e nas aldeias indígenas dos arredores deles. Pelo fato de servirem como moradia e também como locais de culto, as Casas de Candomblé se estruturavam com base em famílias-de-santo, que estabelecia entre seus adeptos uma espécie de parentesco religioso, característica que foi um importante legado a outras religiões sincréticas que se originaram a partir dele. Já a partir da década de 1840 intensifica-se o tráfico de escravos da etnia sudanesa através da “Rota da Mina”, que tinha como origem os portos africanos de Lagos, Calabar e, principalmente São Jorge da Mina, superando no período todas as demais em termos de escravos trazidos ao Brasil. A etnia sudanesa era originada principalmente da África Ocidental, na região onde hoje está localizado a Nigéria, Benin, Togo e Gana, e é formada pelos povos Yorùbá, Ewe, Fon e Mahin, entre outros.
Apesar de inicialmente muitos terem ficado conhecidos apenas como mina, ao longo do século XIX os escravos da etnia sudanesa passaram a ser conhecidos sobre outra nomenclatura, devido a rivalidade e a diferença cultural existente entre os povos Yorùbá e Ewe/Fon, que foi transportada da África para o Brasil junto com eles. Dessa forma, o povo Yorùbá passou a ser conhecido no Brasil como mina-nagô ou nagô, enquanto os povos Ewe, Fon e Mahin ficaram conhecidos como mina-jeje ou jeje, termo que advém do yorùbá djedje que significa estrangeiro ou forasteiro, e era usada de forma pejorativa pelos yorùbá para designar as pessoas que habitavam a leste de seu território.
Os nagôs que foram trazidos para o Brasil cultuavam um deus supremo chamado de Olórun ou Olódùmarè e a natureza também deificada e personificada nas divindades chamadas Orixás. Apesar de na África existirem cerca de 400 Orixás, a grande maioria deles era cultuada em apenas uma cidade, aldeia ou tribo, sendo poucos os que possuíam um culto em várias localidades.

Assim como ocorreu com os Bantu, os escravos sudaneses trouxeram para o Brasil parte de sua cultura e de suas crenças religiosas, que foram pouco a pouco levadas para dentro de algumas manifestações sincréticas aqui existentes, devido aos escravos fugidos que buscavam refúgio nos quilombos e depois aos negros já alforriados, levando ao aparecimento de diversas religiões sincréticas em solo brasileiro no século XIX, muitas delas com base nas Casas de Candomblé. Com a intensificação da adição de elementos sudaneses às Casas de Candomblés no séc. XIX estas acabaram por darem origem a uma nova religião sincrética brasileira conhecida como candomblé de nação, ao qual agrega dentro de si três modelos de culto relacionados às principais etnias e povos trazidos como escravos para o Brasil: os Bantu, os sudaneses nagôs e os sudaneses jeje. 

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