Sincretismo é a fusão de doutrinas de
diversas origens, seja na esfera das crenças religiosas quanto nas filosóficas.
Na história das religiões, o sincretismo é uma fusão de concepções religiosas
diferentes ou a influência exercida por uma religião nas práticas de outra. No
Brasil o sincretismo religioso é uma prática bastante comum. Mas tudo começou a
partir do ano de 1500, quando o território brasileiro se tornou palco para o
encontro de três grandes tradições culturais: a ameríndia, nativa da terra; a europeia,
trazida pelos colonizadores portugueses e mais tarde a africana, trazida pelos
escravos Bantu e sudaneses.
Um encontro que foi, desde o início,
marcado pela imposição da cultura europeia às populações indígenas e africanas,
refletida, principalmente, na imposição da cultura cristã da Igreja Católica
Apostólica Romana a esses dois grupos. Para se viver no Brasil, nesta época, o
índio e o negro mesmo como escravo, e principalmente depois, sendo livre, era
indispensável antes de tudo, ser católico. Por isso eles que cultuavam seus
deuses e tinham suas bases religiosas bem estruturadas, no Brasil se diziam
católicos e se comportavam como tais, além de praticarem os rituais de seus
ancestrais, frequentavam os ritos católicos. Há antropólogos que insistem que a
assimilação entre os Santos e os Orixás era aparente e, inicialmente, serviu
para encobrir a verdadeira devoção aos seus deuses, pelo fato dos cânticos
nesses rituais terem sido efetuados em língua nativa e que ninguém os entendia.
Um fato histórico que pode opor-se a este pensamento é a criação das confrarias
de negros, como exemplo temos a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos, na Bahia, que era totalmente composta por negros que haviam
realmente se convertido ao Cristianismo e não eram apenas uma fachada (Opinião
do autor).
Essa tentativa forçada de aculturação
sempre encontrou resistência, o que acabou resultando em várias tentativas
feitas por indígenas e africanos de conciliar os princípios de suas culturas e,
por consequência, de suas tradições religiosas, a doutrina cultural e religiosa
que lhes eram impostas.
Na tentativa de preservação dos
princípios e práticas religiosas indígenas e africanas, por meio da conciliação
com os princípios e práticas católicas, acabaram levando ao nascimento de
várias manifestações sincréticas em solo brasileiro, únicas no mundo, algumas
delas existentes até os dias de hoje. Mas infelizmente existem poucos estudos
sobre a grande maioria delas, o que veremos aqui, é uma pequena ideia de como
eram as bases dessas duas culturas religiosas, o sincretismo entre elas e os
processos que as levaram a dar origem a outras.
O início de tudo se deu com a
religiosidade Tupi, embora várias nações indígenas habitassem o território
brasileiro durante os primeiros anos da colonização europeia, nenhum grupo foi
tão influenciado pelos portugueses quanto os tupis, que no século XVI dominava
quase todo o litoral brasileiro e era formada pelas tribos: Potiguar, Tremembé,
Tabajara, Caeté, Tupinambá, Aimoré, Tupiniquim, Temiminó, Tamoio e Carijó.
É muito difícil tentar reconstruir com
detalhes as tradições religiosas e crenças tupis na época do descobrimento do
Brasil, pois o que sabemos sobre elas deve-se aos relatos feitos por europeus
que se estabeleceram aqui no início do período colonial, os quais não se
preocuparam em estudar e deixar registros detalhados das mesmas. O que podemos
apreender dos relatos dos primeiros colonizadores sobre a religiosidade tupi
foi que seu ponto central era o culto à natureza deificada ou divinizada. O
pajé e o feiticeiro, ou xamã, eram os que tinham acesso ao mundo dos mortos e
dos espíritos da floresta, e geralmente a eles competiam realizar rituais de
cura de doenças, expulsarem maus espíritos que se alojavam nos corpos das
pessoas e desfazer feitiços mandados pelos inimigos.
A ingestão de alimentos e bebidas
fermentadas em muitos grupos tinha uma função ritualística. Mesmo a
antropofagia que caracterizou os tupinambás se revestia de um tom sagrado, pois
acreditavam que, comendo a carne dos seus inimigos, apoderavam-se de sua
valentia e coragem.
Os tupis possuíam uma divindade suprema
do bem que denominavam Nhanderuvuçu, deus da criação e da luz e a quem competia
o ato divino do sopro da vida. Nhanderuvuçu teria sua morada no Sol,
manifestava-se nas tempestades através de sua voz, na forma de Tupã Cinunga e
de seu reflexo, na forma de Tupã Beraba. Segundo Câmara Cascudo e Osvaldo
Orico, grandes historiadores e estudiosos da cultura brasileira, somente com o
trabalho da catequese, e com a confusão feita pelos jesuítas, que Nhanderuvuçu
passou a ser chamado de Tupã, em virtude das formas como essa divindade se
manifestava durante as tempestades.
Os tupis acreditavam também em outras
divindades, como Guaraci (o deus do sol), Jaci (deusa da lua), Caapora (deus da
floresta), Uirapuru (deus dos pássaros), Iara (deusa das águas) e em uma
entidade civilizadora denominada Iurupari, filho da virgem Chiuci, que teria
sido mandado à terra por Guaraci para reformar os costumes dos seres humanos.
Segundo Diamantino Trindade essa crença que lembrava muito a história de Jesus
Cristo, teria deixado os jesuítas apavorados. Como forma de tornar a religião
católica mais fácil de ser assimilada pelos indígenas, os jesuítas associaram
ao seu deus e santos os nomes de algumas divindades tupis. Foi assim, por
exemplo, que Nhanderuvuçu passou a ser chamado de Tupã e foi transformado em
Deus/Pai. Entretanto, na maioria dos casos, os jesuítas associaram os deuses
indígenas aos demônios da doutrina católica.
Foi o caso, por exemplo, de Iurupari,
que teve sua imagem totalmente invertida e acabou sendo associado ao próprio
diabo, embora sua história lembrasse muito a de Jesus. Isso tudo acabou gerando
a primeira religião sincrética surgida no Brasil da junção da Religiosidade
Tupi e do Catolicismo, que ficou conhecida como santidade, nome criado por
Manoel da Nóbrega, em 1549, quando viu um pajé em transe pregando a outros
indígenas.
Os adeptos da Santidade cultuavam um
ídolo de pedra, chamado de Tupanaçu, que acreditavam possuir poderes sagrados,
rezavam usando cruzes, terços e rosários, construíam “igrejas” e colocavam
tábuas com desenhos de símbolos sagradas nelas, cultuavam alguns santos
católicos e entoavam cantos em honra aos mesmos, faziam um ritual semelhante ao
batismo e realizavam procissões. Neste mesmo período, com o início dos
trabalhos de catequese na região amazônica, a partir da cidade de São Luís do
Maranhão, iniciou-se um processo de sincretismo entre a religiosidade ameríndia
local e o catolicismo, semelhante ao que ocorrera no litoral, levando ao
surgimento da religião sincrética conhecida pelo nome de pajelança.
Embora o termo pajelança acabe sendo
usado também para designar todo e qualquer ritual ameríndio, ele aqui designa a
religião sincrética de caráter mágico-curativa que ainda existe nos dias de
hoje na região amazônica, sobretudo nos estados do Pará e do Amazonas. A
exemplo da Santidade, nos rituais da Pajelança são encontrados o uso de trajes
nativos (pena, arco, flecha, colares, máscaras), cantos e danças, a fumaça
derivada da queima do tabaco e o consumo de bebidas fermentadas, que permitem
ao pajé entrar em transe místico e ter visões e incorporar espíritos.
Em algumas Pajelanças pode-se encontrar
também a devoção aos santos católicos. Uma característica marcante da Pajelança
é que além de incorporarem os espíritos dos antepassados das tribos e de
antigos chefes do culto, os pajés também incorporam espíritos animais, sejam
eles reais como: jacarés, botos, cavalos-marinhos, cobras ou imaginários como:
mãe d'água, cobra-grande, e por meio dos quais descobriam a causa das doenças
de seus consulentes e os remédios para eles.
A partir do século XV inicia-se uma das
maiores migrações forçadas da história da humanidade, na qual milhões de
africanos que haviam sido capturados em seus territórios ancestrais, na maioria
das vezes por outros africanos de tribos rivais, foram levados para o litoral e
vendidos como escravos para os europeus e brasileiros em portos específicos na
África e trazidos nessas condições para o Brasil.
No final do século XVI ao final do
século XVIII, a principal etnia trazida para o Brasil foi a dos Bantu, povo que
durante o período colonial brasileiro ocupava a maior parte do continente
africano situado ao sul do equador, na região onde hoje está localizado o
Congo, a República Democrática do Congo, Angola e Moçambique, entre outros.
Parece que a grande maioria dos Bantu que foram trazidos para o Brasil cultuava
um deus supremo chamado de Nzambi, Nzambi Mpungu ou Anganga Nzambi, ou
simplesmente Zambi como é conhecido hoje, e a natureza deificada que era
personificada nas divindades chamadas Nkise.
Assim que chegavam ao Brasil, os
africanos escravizados eram logo submetidos à aculturação portuguesa, traduzida
principalmente na catequese católica: eram batizados e recebiam um nome
“cristão”, pelo qual seriam conhecidos a partir daquele momento. Assim como os
Tupi, os Bantu também tentando preservar suas tradições religiosas no Brasil,
adaptaram suas crenças às condições de escravidão que estavam submetidos.
A principal forma encontrada por eles,
como foi feito também pelos Tupis, décadas antes, foi associar os santos
católicos aos seus deuses, no caso aqui os Nkise, de acordo com as
características ou arquétipos que ambos possuíam em comum. Foi a partir deste
sincretismo, ocorrido no interior das senzalas a partir do final do século XVI,
que nasceu a primeira manifestação sincrética da religiosidade Bantu/católica
no Brasil: o Calundu. Seu nome foi originado da palavra banto Kilundu, que até
o século XVIII foi utilizada para designar genericamente a manifestação de
práticas africanas relacionadas a danças e cantos coletivos, acompanhadas por
instrumentos de percussão, nas quais ocorria a invocação e incorporação de
espíritos e a adivinhação e curas por meio de rituais de magia.
O que nos chama a atenção são os relatos
da aparente tolerância manifestada pelos proprietários de escravos ao Calundu.
Muito provavelmente essa atitude devia-se a crença de que com essa prática os
africanos manteriam vivas, pelo menos dentro da senzala, as rivalidades tribais
existentes na África, o que dificultaria a formação de rebeliões ou fugas.
É importante ressaltar que, apesar dessa
tolerância, os aspectos ritualísticos do Calundu ligados a magia e a
incorporação de espíritos eram frequentemente combatidos por serem considerados
coisas malignas, surgindo daí a expressão magia negra para designar a magia
voltada para o mal, que na mentalidade da época era “coisa de negro”.
Ao longo de todo o período de escravidão
negra no Brasil, inúmeras foram as tentativas bem-sucedidas de fugas das
senzalas empreendidas pelos africanos.
Os relatos dos inúmeros quilombos
existentes no país ao longo dos períodos colonial e imperial são a prova mais
marcante disso. Entretanto, no início, antes do surgimento dos primeiros
quilombos, os africanos que conseguiam sucesso em suas fugas só conseguiam
abrigo nas aldeias indígenas do interior. Mais do que abrigar os primeiros
africanos Bantu fugidos das senzalas, as aldeias indígenas abrigariam toda a
cultura e religiosidade deles, que acabaria por influenciar sua própria cultura
e religiosidade.
Muito provavelmente no nordeste do
século XVII, onde uma pequena parcela de religiosidade dos Bantu acabou se
misturando ao sincretismo ameríndio-católico do interior, levando ao surgimento
da primeira religião sincrética brasileira, o Catimbó, surgida da fusão
religiosa dos três povos formadores do país, também conhecido como Culto a
Jurema, resistente até os dias de hoje em todo o nordeste brasileiro. Apesar de
existirem a incorporação de Caboclos no Catimbó, seu culto baseia-se
principalmente nas entidades conhecidas como Mestres da Jurema ou apenas
Mestres, e é através deles que se realiza o principal trabalho das entidades do
Catimbó, a cura de doenças e a receita de remédios para os males físicos,
podendo também ocorrer trabalhos para solucionar alguns problemas materiais e
amorosos. Cabe também aos Mestres e aos Caboclos realizar a limpeza espiritual
dos adeptos e a expulsar maus espíritos das pessoas.
Os Mestres são entidades que se
especializam em determinada erva ou raiz e que guardam muito do comportamento e
personalidade de sua última encarnação, o que os torna muito naturais e
espontâneos, além de possuírem uma forte ligação com a sua caracterização
física. Uma característica que chama a atenção é que não existem Mestres do bem
ou do mal: eles tanto podem trabalhar para um quanto para o outro, dependendo
da orientação do local de culto e do médium. Ao longo dos séculos XVII e XVIII
cresce consideravelmente o número de cidades em todo o país, devido a esse
fato, surge uma situação completamente nova em todo o território colonial: o
aumento do número de negros e mulatos alforriados, livres, e de escravos
circulando com relativa liberdade nessas áreas urbanas.
A partir das residências desses negros e
mulatos livres, localizadas em sua grande maioria em casebres e cortiços, que
as manifestações religiosas de origem africana encontraram condições mínimas
para se desenvolverem, onde poderiam realizar suas festas com certa frequência,
construírem e preservarem seus altares com os recipientes consagrados aos seus
deuses. São nessas residências que surgem em fins do século XVIII e início do
século XIX, uma nova manifestação sincrética brasileira, que ficou conhecida na
Bahia como casas de candomblé.
O Candomblé surge então com base no
fortalecimento das tradições religiosas dos Bantu preservadas no sincretismo
com o Calundu e a assimilação de algumas poucas práticas indígenas que
sobreviviam nos quilombos e nas aldeias indígenas dos arredores deles. Pelo
fato de servirem como moradia e também como locais de culto, as Casas de
Candomblé se estruturavam com base em famílias-de-santo, que estabelecia entre
seus adeptos uma espécie de parentesco religioso, característica que foi um
importante legado a outras religiões sincréticas que se originaram a partir
dele. Já a partir da década de 1840 intensifica-se o tráfico de escravos da
etnia sudanesa através da “Rota da Mina”, que tinha como origem os portos
africanos de Lagos, Calabar e, principalmente São Jorge da Mina, superando no
período todas as demais em termos de escravos trazidos ao Brasil. A etnia
sudanesa era originada principalmente da África Ocidental, na região onde hoje
está localizado a Nigéria, Benin, Togo e Gana, e é formada pelos povos Yorùbá,
Ewe, Fon e Mahin, entre outros.
Apesar de inicialmente muitos terem
ficado conhecidos apenas como mina, ao longo do século XIX os escravos da etnia
sudanesa passaram a ser conhecidos sobre outra nomenclatura, devido a
rivalidade e a diferença cultural existente entre os povos Yorùbá e Ewe/Fon,
que foi transportada da África para o Brasil junto com eles. Dessa forma, o
povo Yorùbá passou a ser conhecido no Brasil como mina-nagô ou nagô, enquanto
os povos Ewe, Fon e Mahin ficaram conhecidos como mina-jeje ou jeje, termo que
advém do yorùbá djedje que significa estrangeiro ou forasteiro, e era usada de
forma pejorativa pelos yorùbá para designar as pessoas que habitavam a leste de
seu território.
Os nagôs que foram trazidos para o
Brasil cultuavam um deus supremo chamado de Olórun ou Olódùmarè e a natureza
também deificada e personificada nas divindades chamadas Orixás. Apesar de na
África existirem cerca de 400 Orixás, a grande maioria deles era cultuada em
apenas uma cidade, aldeia ou tribo, sendo poucos os que possuíam um culto em
várias localidades.
Assim como ocorreu com os Bantu, os
escravos sudaneses trouxeram para o Brasil parte de sua cultura e de suas
crenças religiosas, que foram pouco a pouco levadas para dentro de algumas
manifestações sincréticas aqui existentes, devido aos escravos fugidos que
buscavam refúgio nos quilombos e depois aos negros já alforriados, levando ao
aparecimento de diversas religiões sincréticas em solo brasileiro no século
XIX, muitas delas com base nas Casas de Candomblé. Com a intensificação da
adição de elementos sudaneses às Casas de Candomblés no séc. XIX estas acabaram
por darem origem a uma nova religião sincrética brasileira conhecida como candomblé
de nação, ao qual agrega dentro de si três modelos de culto relacionados às
principais etnias e povos trazidos como escravos para o Brasil: os Bantu, os
sudaneses nagôs e os sudaneses jeje.
Nenhum comentário:
Postar um comentário